quarta-feira, 12 de agosto de 2009

O padre voador a quem a Inquisição cortou as asas


74 anos antes dos irmãos Montgolfier, um balão de ar quente elevava-se perante D. João V, a rainha e o futuro Papa Inocêncio XIII
Neste sábado subiram em Lis¬boa, no Rossio dos Olivais, na Es¬tação Sul e Sueste, no Terreiro do Paço, e nos Jardins Vieira Por¬tuense, em Belém, balões de ar quente transportando adultos e crianças. O que hoje é um mero divertimento ligado à celebração de uma efeméride, há 300 anos foi um feito científico de relevo, levado a cabo, na corte de D. João V, pelo padre jesuíta Barto¬lomeu de Gusmão. Antecipou em 74 anos os aeróstatos dos ir¬mão franceses Montgolfier, consi¬derados os pais da aviação. Ao que o Expresso apurou, o Minis¬tério da Cultura prepara uma ex¬posição itinerante sobre o tema.
Três dias depois de uma expe¬riência mal sucedida, a 8 de Agosto de 1709, um pequeno ba¬lão impulsionado por uma bar¬quinha com fogo levantou da Sa¬la dos Embaixadores, na Casa da Índia, elevando-se até quatro me¬tros de altura. Assistiram à expe¬riência o rei, a rainha Maria Ana e o cardeal Conti, futuro Papa Inocêncio XIII.
Admite-se que nas semanas se¬guintes possa ter havido mais lançamentos de balões, sendo, no entanto, puramente lendário o voo de Bartolomeu de Gus¬mão entre o Castelo de São Jor¬ge e o Terreiro do Paço a bordo de um engenho voador chama¬do 'Passarola', protagonista do episódio-chave de "O Memorial do Convento", de Saramago.
Foi, aliás, ao mitificar o seu próprio feito que o "padre voa¬dor" caiu no descrédito, amplia¬do pelas invejas da corte e pelo obscurantismo da Inquisição. Uma amostra das sátiras em ver¬so com que foi brindado pelos contemporâneos aparecerá no próximo livro do investigador universitário Joaquim Fernan¬des, "Mitos, Mundos e Medos ¬O Céu na Poesia Portuguesa". Inclui versos de Tomás Pinto Brandão, a quem Camilo Caste¬lo Branco chamaria "o pontífice dos poetas biltres do séc. XVIII".
Balão sem mistério
Gusmão falava do uso de "mag¬netes" ou de "quintessências em vaso fechado aquecidas pelo sol" para impulsionar o seu en¬genho voador. Como refere Joa¬quim Fernandes (também au¬tor de "O Grande Livro dos Por¬tugueses Esquecidos"), o inven¬tor português ignorava os traba¬lhos de Newton (1687) sobre a gravitação universal. E para os seus balões não tinha melhor fluido que o ar quente, "já que Cavendish só descobriu a exis¬tência do hidrogénio em 1766".
Gusmão elabora, em 1709, o seu "Manifesto Sumário para Os Que Ignoram Poder-se Navegar pelo Elemento Ar", onde expõe conceitos perfeitamente actuais sobre o uso estratégico do poder aéreo ou o transporte de passa¬geiros e mercadorias pelo ar.
Seria "um estupendo arbítrio que em oito dias poderia man¬dar avisos ao Brasil, em poucos mais à Índia, em três dias a Ro¬ma e em uma hora às fronteiras do Reino".
Na petição apresentada, em 1709, a D. João V, pedindo privi¬légio para o seu invento e que o rei haveria de deferir, expõe ou¬tras vantagens da sua máquina voadora. "Nesse instrumento po¬deriam ser levados avisos às Pra¬ças sitiadas, ser socorridas, tan¬to de gente como de munições e víveres (...) descobrir-se-ão as terras q e ficam debaixo dos Pó¬los do Mundo, por cessarem no Ar os impedimentos que por mar tem havido".
José da Cunha Brochado era menos optimista: "No mesmo tempo em que temos tão poucos homens que saibam andar pelo mar e pela terra, se achou um que quer andar pelo ar..."
Alvo da chacota dos ignoran¬tes que o rodeavam, acaba por partir para a Holanda em 1713, de onde regressa três anos de¬pois. Apesar da protecção de D. João Vede alguns espíritos mais abertos, como o duque do Cadaval e o marquês de Fontes, a sua. ascendência brasileira e mestiça, a proximidade com cris¬tãos-novos que a inquisição viria a perseguir (caso de António Jo¬sé da Silva, dito "o Judeu"), cau-sam-lhe sucessivos problemas que culminam, em Setembro de 1724, com um escândalo envol¬vendo freiras do convento de. Odivelas, próximas da corte.
Segue-se uma aventurosa fuga a pé para Espanha, morrendo de esgotamento e doença em To¬ledo, em 1724. Da sorte dos seus documentos pouco se sabe. Joa¬quim Fernandes admite que um irmão, o diplomata Alexandre de Gusmão, os tenha cedido, em Paris, ao astrónomo português José Soares de Barros, amigo dos irmãos Montgolfier.
Assim, desaparecia aos 39 anos um homem que, como sublinha Joaquim Fernandes, teve o azar de ter chegado a Lisboa demasia¬do cedo. Em Junho de 1784, o sábio Domingos Vandelli, chama¬do pelo marquês de Pombal pa¬ra modernizar a Universidade, mandava lançar em Coimbra uma máquina aerostática.

PERCURSO
• Bartolomeu de Gusmão nasce em Santos, no Brasil, em 1785, ingressando no seminário jesuíta de Belém. Vem pela primeira vez a Portugal em 170, impressionando a Corte com a sua prodigiosa memória
• Regressa a Portugal em 1708, estudando física e matemática em Coimbra. Em 1709 pede a D. João V. apoio para desenvolver "um instrumento para se andar pelo ar da mesma sorte que pela terra e pelo mar". O monarca concede-lhe privilégio em Abril do mesmo ano
• Em 1720 D. João V nomeia-o fidalgo-capelão da Casa Real. Após a fuga para Espanha (1724) o seu nome é apagado dos registos da Academia Real de História

(Expresso) 2009.Agosto.08 | Memória - RUI CARDOSO rcardoso@expresso.impresa.pt

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