quarta-feira, 31 de agosto de 2011

História da Arte - um contributo fundamental da Química


"CRISTO E A MULHER ADÚLTERA",
QUE CHEGOU A SER ATRIBUIDO
A JOHANNES VERMEER, NÃO
PASSA DE UMA FALSIFICAÇÃO


SEGREDOS DA HISTÓRIA DA ARTE
Expresso/Atual, 2011.Agosto.20 | Virgílio Azevedo
João Peixoto Cabral, pioneiro na aplicação em Portugal de métodos nucleares na investigação em arqueologia e nos estudos de história da arte, lança, aos 83 anos de idade, uma obra única a nível internacional: ”A Radioactividade - Contributos para a História da Arte"
Aos 83 anos, João Pei¬xoto Cabral lançou-se num projeto ambicio¬so: fazer um manual que explicasse ao mes¬mo tempo ao público em geral, aos estudan¬tes e aos peritos – de uma forma exaustiva, rigorosa, profusamen¬te ilustrada e com exemplos concretos – o papel decisivo da radioatividade na história da arte. A tare¬fa não era fácil, porque ninguém tinha feito em Por¬tugal ou a nível internacional uma obra desta enver-gadura. Mas o professor jubilado de Radioquímica do Instituto Superior Técnico (IST) não tinha pressa e demorou três anos a completar o seu projeto.
"A Radioactividade - Contributos para a Histó¬ria da Arte", lançada recentemente pela IST Press, é uma obra monumental, com quase 500 páginas, on¬de estão em destaque os métodos de datação de pin¬turas e esculturas deixadas por gerações de artistas talentosos ao longo de séculos e milénios. Dividida em duas partes - 'A Radioactividade' e 'Contributos para a História da Arte' –, o livro aborda a radioativi¬dade natural e artificial, os processos de decaimento radioativo, a interação das radiações com a matéria, a datação com base na radioatividade da arte paleolí¬tica, a autenticação de obras de arte – desde as pin¬turas de cavalete às esculturas em terracota, cerâmi¬ca ou metal. E o seu exame por irradiação de neu¬trões, onde a aplicação da chamada autorradiogafia às pinturas de Van Dyck, Rembrandt ou Vermeer, permitiu descobrir detalhes sobre os seus esboços originais, alterações feitas ao longo da execução das suas obras, enfim, o que passou pela mente destes pintores geniais no processo de criação artística.
O prestigiado físico nuclear alemão Joseph Ma¬gill, do laboratório europeu Joint Research Centre, interessou-se pelo livro e apoiou o autor, tal como Jean Clottes, o maior especialista francês – e um dos maiores do mundo – em arte rupestre, que for¬neceu gratuitamente várias das fotos que o ilus¬tram. O conhecido arqueólogo português João Zi¬lhão, professor catedrático de investigação na Insti¬tuição Catalã para a Investigação Avançada (ICREA) da Universidade de Barcelona, e um dos apresentadores do livro na sessão de lançamento, argumenta que, na datação das obras de arte, "os arqueólogos não têm muitas vezes os conhecimen¬tos técnicos necessários nas áreas da física e da quí¬mica e, em contrapartida, os laboratórios não pon¬deram o contexto arqueológico, cultural e ambien¬tal do que estão a analisar". Ou seja, "não têm co¬nhecimentos profundos para serem suficientemen¬te críticos". Quem fica a perder é, obviamente, a história da arte,
"O ideal é que existam arqueólogos que perce¬bam o suficiente das técnicas da física e da química e físicos e químicos com experiência na datação que tenham um conhecimento profundo da história da arte", prossegue João Zilhão. "Isso é raro em Portu¬gal e no mundo, mas João Peixoto Cabral reúne as duas qualidades, o que se reflete no seu livro." O próprio autor explica ao Expresso que, "desde que a energia nuclear caiu em desgraça, a radioquímica e a física nuclear perderam interesse por parte das próprias universidades". Peixoto Cabral reconhece que há falta de informação em Portugal sobre esta matéria entre os arqueólogos, e Fernando Pina, que escreveu o prefácio do livro e é presidente do Depar¬tamento de Conservação e Restauro da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, salienta que "estamos num país onde as ofer¬tas educativas nesta área são escassas e onde a maio¬ria das pessoas abomina e teme o nuclear". E se as ciências ligadas à física e à química nucleares "têm sido por vezes usadas de um modo condenável, per¬mitem ao mesmo tempo um maior conhecimento da atividade do Homem ao longo da História".
Os exemplos dados por João Peixoto Cabral na sua obra são, sem dúvida, esclarecedores a este res¬peito. É o caso da história de Han Van Meegeren, um artista holandês com talento mas, sobretudo, um falsificador exímio com uma atração especial pe¬los quadros de Johannes Vermeer, o famoso pintor holandês do século XVII. Em novembro de 1937, o historiador de arte Abraham Bredius anunciou a descoberta de um quadro de Vermeer, "Cristo em Emaús", tendo afirmado que se tratava de uma pin¬tura de rara beleza e de elevada qualidade artística. A obra foi considerada uma falsificação por um peri¬to de uma leiloeira mas acabou por ser comprada a peso de ouro pelo Museu Boymans de Roterdão.
Quando as tropas nazis ocuparam a Holanda, du¬rante a Segunda Guerra Mundial, surgiram no mer¬cado mais quadros de Vermeer que acabaram por ser comprados por colecionadores. O mais célebre foi o marechal alemão Hermann Göring, que adqui¬riu o quadro "Cristo e a Mulher Adúltera" (ver imagem) a um banqueiro nazi. Depois da guerra, em 1945, Göring foi julgado pelo Tribunal de Nuremberga e condenado à morte, tendo-se suicidado na prisão. O quadro foi encontrado na sua coleção e as investiga¬ções da polícia concluíram que tinha sido vendido a Göring através de Han Van Meegeren.
O artista holandês foi então acusado de colabora¬ção com os nazis, tendo sido preso e julgado como traidor em 1946, o que podia ter levado à pena de morte. Mas, no julgamento, Meegeren argumentou, em sua defesa, que o "Cristo e a Mulher Adúltera" era falso porque fora pintado por ele, bem como to¬dos os quadros inéditos de Vermeer descobertos en¬tre 1939 e 1943. Para o provar – e para provar a sua inocência – pintou um novo quadro ao estilo de Ver¬meer perante uma equipa de peritos, a que chamou "Jesus entre os Doutores". O tribunal decidiu, por isso, que os 'Vermeers' fossem analisados nos labora¬tórios do Instituto Real do Património Artístico de Bruxelas, que efetivamente confirmou que todos os quadros eram falsos, com base em três evidências: foi encontrado azul-cobalto, um pigmento sintético que só começou a ser fabricado depois da morte de Vermeer (século XVIII); todas as pinturas conti¬nham baquelite, uma resina descoberta apenas no início do século XX; as radiografias tiradas às obras mostravam que as fissuras no verniz eram superfi¬ciais, ao contrário do que acontecia nos verdadeiros quadros de Vermeer, onde eram mais fundas, Mas as dúvidas continuaram e só em 1968, através de um novo método de datação de obras de arte baseado na radioatividade natural do pigmento branco de chumbo, tudo ficou devidamente esclarecido.
Outra polémica relatada no livro é bem conheci¬da dos portugueses: as gravuras do vale do Coa, des-cobertas em 1994, tendo as mais antigas sido dese¬nhadas há cerca de 20 mil anos. Hoje são considera¬das o maior complexo de arte rupestre paleolítica ao ar livre do mundo e levaram a EDP a desistir da cons¬trução de uma barragem. A empresa encomendou na altura a datação a quatro peritos estrangeiros, que concluíram que as gravuras não seriam paleolíti¬cas mas teriam apenas 200 anos. Um deles, o austra¬liano Robert Bednarik, assinou mesmo um artigo na revista "Antiquity" onde criticou os argumentos e os métodos de datação usados por arqueólogos portu¬gueses e de outras nacionalidades para provarem a antiguidade das gravuras. João Zilhão liderou a con¬testação a Bednarik, publicando um artigo na mes¬ma edição da revista, e a polémica foi tão grande que no Congresso Internacional de Arte Rupestre em Tu¬rim, em 1995, as gravuras do Coa foram praticamen¬te o único tema em debate. Os métodos de datação usados em toda a investigação foram muito diversifi¬cados (radiocarbono, microerosão, termolumines¬cência, luminescência estimulada oticamente, etc.) e acabaram por dar razão à tese de João Zilhão. A

vazevedo@expresso.impresa.pt

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Guerra e clima



A crise actual na Somália está ligada com o clima (Feisal Omar/Reuters)


Estudo publicado na Nature
Um quinto das guerras desde 1950 está associado ao El Niño
(PÚBLICO) 2011.08.24 | Nicolau Ferreira

Sempre se tentou relacionar acontecimentos climáticos e meteorológicos a conflitos, guerras ou fins de civilizações, desde a queda do império Egípcio em 2180 a.C. até à Revolução Francesa, em 1789. O que agora uma equipa de cientistas acrescentou foram números que mostram que o fenómeno climático El Niño faz duplicar as probabilidades da existência de guerras e conflitos civis nas regiões do globo que sofrem os efeitos do aquecimento das águas do oceano Pacífico. O estudo publicado nesta quarta-feira na edição online da revista Nature defende ainda que um quinto dos conflitos no mundo desde 1950 está associado de alguma forma a este fenómeno.
“Tradicionalmente, pensa-se que os fenómenos socioeconómicos são os principais responsáveis pelos conflitos. O que é surpreendente no nosso estudo é a capacidade que o clima global tem para provocar violência”, disse ao PÚBLICO Kyle Meng, da Universidade de Columbia, Nova Iorque (EUA) e um dos três investigadores responsáveis pelo estudo.
O El Niño serve como modelo perfeito para estudar a dicotomia entre guerras e clima. Acontece a cada três a sete anos, faz subir as temperaturas e diminui as chuvas nas zonas dos trópicos, e é alternado pela La Niña, que se traduz por um arrefecimento das águas do Pacífico, e que inverte a situação meteorológica dos países afectados pelo El Niño.
Os investigadores dividiram os países da Terra num grupo afectado pelo fenómeno e noutro não afectado. Depois mediram os conflitos civis desde 1950, partindo do princípio que um novo conflito num país tinha que estar temporalmente separado do anterior por dois anos e tinha que ter sido responsável por pelo menos 25 mortos. Os dados incluíram ao todo 234 conflitos, mais de metade matou acima de mil pessoas.
Antecipar crises
Os resultados mostram que nos anos de El Niño, os países que estão sob a sua influência climática duplicam a probabilidade de três para seis por cento de iniciarem um conflito civil. No grupo de países que não estão sob o jugo do El Niño — Europa, Ásia e parte da América do Norte —, a probabilidade do início de uma guerra civil é sempre de dois por cento ao longo dos anos. “É muito difícil dizer se estes países são mais pacíficos porque estão menos expostos aos efeitos do El Niño ou porque têm instituições políticas estáveis ou por outra razão qualquer”, disse Meng.
O estudo conclui também que nos últimos 60 anos, o El Niño “pode ter afectado” 21 por cento dos conflitos no mundo e 30 por cento dos conflitos nos países susceptíveis ao fenómeno. “O mais importante deste estudo é que olha para os tempos modernos, e é feito numa escala global”, disse por comunicado Solomon Hsiang, co-autor do artigo, acrescentando que as pessoas não podem argumentar que a humanidade está imune ao clima.
Segundo o autor, a crise actual na Somália, onde já foi declarada a fome, é um exemplo perfeito das consequências do El Niño.
Apesar do estudo não fazer uma ligação directa entre os efeitos do El Niño e o início dos conflitos, os autores defendem que já se pode actuar sobre o problema. Pode-se prever o El Niño e “o mundo tem algum tempo de avanço para se preparar para surtos de violência, muito pode ser feito por instituições como a ONU”, disse Mong.

"Villa" romana no Monte da Chaminé - F. Alentejo

Nem a história nem o historiador vão de férias...

Ferreira do Alentejo
Escavações na “villa” romana

Os trabalhos arqueológicos na "villa" romana do Monte da Chaminé, em Ferreira do Alentejo, recomeçaram ontem, para os arqueólogos confirmarem a área do lagar de azeite identificado e a eventual ocupação do sítio em período visigótico. A "villa" descoberta em 1982 foi ocupada desde o século I a. C. até ao século V d.C. […]
in Correio da Manhã, 2011.Agosto.23

domingo, 24 de julho de 2011

Alterações climáticas

A História diz-nos que o clima não é «determinado» pelo comportamento do homem...



Calor, secas, cheias
Bem-vindos à Idade Média
PÚBLICO) 2010.Outubro.21 | Ricardo Garcia
Na Gronelândia, os vikings chegaram a pontos hoje inacessíveis. Há muito que se sabe que a era medieval foi quente em parte da Terra. Mas hoje o aquecimento é maior e global, dizem os cientistas.
Secas épicas, permanentes. Cheias brutais, sucessivas. Alterações profundas na agricultura, na floração das plantas, nas estações do ano. Populações deslocadas. Um retrato das alterações climáticas no final do século XXI? Não, bem-¬vindos à Idade Média. Entre 900 e 1300, aproximadamente, algumas regiões do globo foram tão ou mais quentes do que a Terra no século XX, quando o mundo acordou para o problema do aquecimento global.
A existência de um Período Quente Medieval é um dos principais argumentos dos que contestam a tese de que o aquecimento actual é uma realidade sem precedentes nos últimos mil anos e tem origem sobretudo humana. Se é verdade que foi tão ou mais quente há alguns séculos – muito antes do carvão e do petróleo –, então como dizer agora que a culpa é do ser humano e não da variabilidade natural do clima?
O climatologista Ricardo Trigo, do Centro de Geofísica da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, reconhece que se trata de uma questão importante. Mas não tem dúvidas. "Várias reconstruções mostram que aquele período teve, de facto, valores próximos dos do século XX. Mas não como os das últimas três décadas", afirma.
Ricardo Trigo foi um dos organizadores de um encontro científico, em Lisboa, no qual alguns dos maiores especialistas mundiais no passado climático da Terra puseram em dia o que se sabe hoje sobre o Período Quente Medieval. Sob um clima ameno de fim de Setembro, o tema foi discutido por um grupo selecto de cientistas, em mangas de camisa, escolhidos a dedo pela Faculdade de Ciências de Lisboa e pela agência norte-americana para os oceanos e a atmosfera (NOAA).
Palavra-chave
Há uma palavra-chave em torno da qual orbita o trabalho destes cientistas – "reconstrução". Para saber se o clima quente de hoje é inédito, é preciso conhecer como foi o do passado. Mas, a nível global, só há dados de termómetros para os últimos 150 anos. Daí que seja preciso "reconstruir" o passado climático, com base noutros tipos de fontes – uma tarefa susceptível a grandes incertezas.
Sem termómetros, tudo o que os cientistas têm à mão são indicadores climáticos indirectos (proxies, no jargão académico). Documentos históricos são um deles. Registos escritos, muitos feitos nos mosteiros, de colheitas, de observação do tempo, de catástrofes meteorológicas, de épocas de floração, ajudam a reconstituir o clima. O mesmo vale para imagens.
É na própria natureza, porém, que estão as maiores fontes. Amostras de gelo das regiões polares guardam testemunhos milenares sobre a precipitação, sobre a fusão periódica da cobertura gelada, sobre a composição da atmosfera. De corais do Pacífico também se extraem dados climáticos.
Há cientistas que se dedicam a avaliar o clima passado pelos tipos de pólen encontrados em diferentes camadas de solo. Outros analisam a composição de estalagmites nas cavernas, cuja formação pode estender-se por dezenas de milhares de anos. Sedimentos recolhidos em lagos também dão pistas sobre como foi o clima há séculos ou milénios.
De todos os indicadores indirectos, os anéis de crescimento das árvores são considerados um dos mais importantes. A sua largura e densidade indicam, ano a ano, se o clima foi mais quente ou mais frio, mais húmido ou mais seco. Combinando-se amostras de diferentes idades, é possível reconstituir as condições climáticas ao longo de milhares de anos.
Uma das vantagens dos anéis de árvores está no facto de haver amostras em vários pontos do planeta. "As árvores são provavelmente os proxies mais largamente distribuídos", afirma o climatologista Phil Jones, do Centro de Investigação Climática da Universidade de East Anglia. Além disso, somam-se já largas décadas de experiência com a dendroclimatologia – o nome desta técnica que nasceu na Escandinávia no final do século XIX. "É a mais conhecida ciência de proxies", diz Phil Jones.
O que todos estes indicadores indirectos sugerem é que na Idade Média as temperaturas estavam em alta, pelo menos nalguns pontos do planeta. E há muito tempo que se sabe disso. Em 1914, o cientista sueco Otto Pettersson descreveu como largas áreas da Islândia eram cultivadas no século X, antes de serem posteriormente cobertas de gelo. Na mesma altura, os vikings colonizaram a Gronelândia, chegando a pontos
que o frio também tornaria depois inacessíveis.
Foi o climatologista britânico Hubert Lamb, porém, quem cunhou a designação Medieval Warm Period (Período Quente Medieval). Em 1965, Lamb publicou um artigo sugerindo que, pelo menos na Europa, o tempo foi particularmente quente entre 1000 e 1200, seguido de séculos de frio, entre 1500 e 1700. Lamb calculou que, entre esses dois períodos, a temperatura média na Inglaterra variou entre 1,2 e 1,4 graus Celsius – muito mais do que os 0,7 graus Celsius de diferença verificado no planeta ao longo do século XX. Anos mais tarde, o mesmo cientista estimou que, nalguns pontos, as temperaturas na Idade Média chegaram a ser 1,0 a 2,0 graus mais elevadas do que no princípio do século XX.
A maior parte das reconstruções feitas desde então corrobora a tese de um aquecimento durante a época medieval, pelo menos no Hemisfério: Norte. Com base nesses resultados, o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) conclui que o período mais quente dos últimos dois mil anos, antes do século XX, centra-se entre 950 e 1100.
Dizer se foi mais ou menos quente do que agora depende da escala de tempo a que se olha para o fenómeno. Analisando períodos de 100 anos, um estudo submetido à conferência de Lisboa conclui que o aquecimento na Idade Média foi tão uniforme como o do século XX. A uma escala menor, outro estudo sugere que, na Europa, o aquecimento nas primaveras e verões medievais foi mais heterogéneo, década a década, do que o de agora. E os picos de temperaturas extremas eram muito menos frequentes.
Secas de 200 anos
Temperaturas à parte, o Período Quente Medieval foi marcado por outras perturbações climáticas – como as "megassecas" que ocorreram no que hoje são os Estados Unidos. Duas delas foram praticamente simultâneas - uma no actual Nebrasca, que durou 38 anos (1276-1313), e outra, de 24 anos (1276-1299), no Colorado, que terá afastado populações nativas que ali viviam, da civilização anasazi. Na Califórnia, o cientista norte¬ americano Scott Stine encontrou, em resquícios de árvores submersas, evidências de secas ainda maiores, de até dois séculos de duração.
Longe dali, no Egipto, há registos de cheias avassaladoras, combinadas com crises de fome, entre os séculos
IX e XV. O facto de as alterações climáticas nessa altura não se terem manifestado apenas na temperatura faz com que alguns cientistas prefiram designar àquele período como Anomalia Climática Medieval.
As evidências do aquecimento, em si, são mais fortes no Hemisfério Norte, sobretudo nas latitudes mais altas. Mas, quanto ao resto do mundo, o conhecimento é ainda modesto. Há poucos indicadores para as temperaturas passadas nos trópicos, em África, em grande parte dos oceanos. "Estamos longe de ter dados suficientes para qualquer estimativa significativa de um aquecimento medieval global", conclui o IPCC, no seu último relatório de avaliação da ciência climática, de 2007.
Mesmo os estudos que agora surgem são ainda muito pontuais. Um deles, liderado pelo investigador Jürg Luterbacher, da Universidade de Giessen, na Alemanha, produziu, pela primeira vez, uma reconstrução das temperaturas de parte do Hemisfério Sul – abaixo do paralelo 20ºS (mais ou menos de São Paulo para baixo). E concluiu que, naquela região, o clima entre 950 e 1350 era, em média, ainda mais quente do que o do século XX.
Segundo outros investigadores, nos trópicos, poderá ter ocorrido o contrário, um arrefecimento do clima, devido a uma tendência maior para o fenómeno La Niña, no qual a temperatura do Pacífico equatorial permanece mais baixa.
As incertezas são grandes, sobretudo pelo número reduzido de proxies além do Hemisfério Norte. "Temos de ser cautelosos ao interpretar esses resultados", afirma Luterbacher.
Phil Jones acredita que, para determinadas regiões do globo, tão cedo não será possível chegar a reconstruções fiáveis. "A incerteza vai diminuir no futuro, mas não será rápido", antecipa.
Manchas solares
Variações na actividade solar poderão explicar em parte o aquecimento da Idade Média. Mas sabe-se menos sobre estas flutuações naquele período do que nos séculos seguintes, para quando se generalizou a observação das manchas solares. A Pequena Idade do Gelo, que trouxe invernos rigorosos à Europa e à América do Norte entre 1400 e 1900, coincidiu parcialmente com um período de actividade solar excepcionalmente baixo, conhecido por Maunder Minimum (1645-1715).
Apesar das incertezas, os cientistas reconhecem avanços no conhecimento do Período Quente Medieval. "Há muito mais dados agora do que há dez anos", diz Ricardo Trigo. Foi há cerca de uma década que um grupo de investigadores produziu o célebre gráfico do hockey-stick – que mostra as temperaturas médias do Hemisfério Norte desde o ano 1000, mas com uma subida exponencial, sem precedentes, nas últimas décadas. Incluído num relatório do IPCC de 2001, o gráfico foi alvo de críticas, por alegadas falhas metodológicas.
Mas, segundo Ricardo Trigo, outras reconstruções climáticas desde então, mesmo levando em conta o aquecimento medieval, confirmaram aqueles resultados.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Afinal, quem foram os primeiros povoadores dos Açores? Uma "decoberta" polémica.



Dois artigos de dois jornais - `´ublico e Diário de Notícias de 13 de Julho de 2011.

Açores
Alegada descoberta arqueológica na ilha Terceira
não tem comprovação científica

(PÚBLICO) 2011.Julho.13 | Cláudia Carvalho

Supostos monumentos funerários localizados no Monte Brasil obrigariam a rever a história do arquipélago. Diferentes especialistas duvidam, porém, da autenticidade da tese apresentada.
Não existe um consenso em relação à descoberta dos novos sítios arqueológicos no Monte Brasil, em Angra do Heroísmo, na ilha Terceira, Açores. A descoberta foi anunciada na passada quinta-feira pelos arqueólogos Nuno Ribeiro e Anabela Joaquinito, da Associação Portuguesa de Investigação Arqueológica (APIA). A Direcção Regional da Cultura dos Açores (DRCA), entidade que regulamenta a actividade arqueológica no arquipélago, não reconhece a descoberta e os especialistas na área não acreditam que existam no Monte Brasil monumentos e santuários do tipo hipogeu, do século IV a.C.
"Em primeiro lugar, não podemos sequer falar de uma descoberta ou um achado. Ninguém descobriu nada agora, aquelas estruturas escavadas na rocha já existem há muitíssimos anos. Diz a história e os documentos que aquelas grutas foram estruturas de apoio militar, propositadamente criadas para aquele efeito. Não tenho nenhuma razão para acreditar que aquilo seja outra coisa", diz ao PÚBLICO Francisco Maduro Dias, presidente do Instituto Histórico da Ilha Terceira, explicando que durante a II Guerra Mundial aquele era um sítio de abrigo e de apoio das tropas portuguesas.
Porém, Nuno Ribeiro, o arqueólogo responsável pelo projecto da APIA, tem a certeza do seu achado. "Aquilo que vimos são estruturas impressionantes, verdadeiros túmulos. No século XV não era esta a forma de construção utilizada. São grandes templos escavados dentro de monumentos do tipo hipogeu [monumentos funerários subterrâneos], de grandes dimensões, muito bem conservados. Pela planta dos monumentos, pela simbologia e pelo contexto, podemos afirmar que são monumentos com cerca de 2500 anos." O arqueólogo diz que ainda não foram feitos quaisquer trabalhos de investigação no sítio, tendo para já apenas recorrido ao método comparativo, em algumas "viagens de recreio", através da observação do espaço e da comparação com complexos arqueológicos semelhantes.
"Aquilo são grutas. Quando há uma ocupação humana, há sempre vestígios que ela deixa. Aqui não há nada. Como é que se pode afirmar isto? Não existem meios que sustentem a existência humana [nas ilhas] antes dos portugueses", comentou o investigador Monge Soares, actualmente no Instituto Tecnológico e Nuclear, em Sacavém. Ideia igualmente partilhada por Ana Arruda, arqueóloga e professora na Faculdade de Letras de Lisboa. "Para haver mortos, teria de haver vivos, ou seja, teriam de existir espaços arqueológicos que provassem a vida, e isso não há", disse a académica, argumentando que se existem evidências de túmulos e santuários, teria de haver provas da existência de pessoas que prestassem culto. Com esta descoberta, a história do povoamento do arquipélago – que, de acordo com as fontes históricas e científicas, ocorreu apenas no século XV – teria de ser revisto. "Eu tenho as maiores reservas em aceitar isto. É preciso apresentar dados arqueológicos que provem isso e até agora não foi feito. Com esta evidência arqueológica, parece-me tudo fantasia."
Fantasia "ao estilo de Indiana Jones" foi como o Centro de Estudos de Arqueologia Moderna e Contemporânea definiu esta notícia, acusando a APIA de falta de "validação científica". A instituição escreveu em comunicado que as descobertas são "meramente sensacionalistas e ao gosto de filmografia de Indiana Jones. Descredibilizam, mormente, a classe arqueológica, que se deve mover com dados fundamentados e com rigor na interpretação e na análise do passado".
Também o presidente da Associação Portuguesa de Arqueólogos, José Arnaut, defende uma comprovação científica dos factos. "Em arqueologia tudo é possível se for devidamente comprovado", refere. "Há muita especulação em relação a estas questões, de tempos em tempos surgem afirmações assim, mas não basta dizer. Na prática, é preciso ser comprovado por especialistas nas áreas, através de métodos científicos específicos."
Numa primeira fase, o projecto da APIA não foi aprovado pela DRCA, por falta de verbas, segundo Nuno Ribeiro. Mas o director regional Jorge Augusto Paulus Bruno considerou "irregular a apresentação pública de resultados e conclusões sobre eventuais sítios arqueológicos no Monte Brasil referentes a ocupações humanas anteriores ao povoamento português". Via email, o responsável explicou que "a associação APIA nunca apresentou até à data qualquer pedido formal de autorização de realização de prospecções". Em relação ao achado, Paulus Bruno partilha da mesma opinião que os arqueólogos: "Falta de comprovação científica". Nuno Ribeiro combate as críticas falando em falta de conhecimento do espaço e possíveis invejas, prometendo que em Setembro, altura em que apresentará as descobertas no congresso SEAC 2011, em Évora, anunciará novidades que provarão que tem razão.


Descoberta de ‘templos’ gera polémica nos Açores
(Diário de Notícias) 2011.Julho.12 | Paulo Faustino (Ponta Delgada

IV A. C. Presidente do Instituto Histórico da Ilha Terceira defende que alegados templos dedicados a deusa lunar cartaginesa não passam de estruturas de apoio militar
O Presidente do Instituto Histórico da Ilha Terceira, Francisco maduro Dias, resume a ‘cafuas’ de apoio às guarnições militares em Angra do Heroísmo, Açores, aquilo que os arqueólogos Nuno Ribeiro e Anabela Joaquinito admitem ser a descoberta no monte Brasil de templos dedicados a Tanit, deusa cartaginesa, do século IV a.C.
Os dois arqueólogos, da Associação Portuguesa de Investigação Arqueológica (APIA), encontraram o que dizem ser túmulos escavados nas rochas que apontam para a existência de cinco monumentos do tipo hipogeu, e de alguns ‘santuários’ proto-históricos. Em causa estarão, segundo Nuno Ribeiro e Anabela Joaquinito, templos de grandes dimensões, bem conservados e com uma planta quase triangular, incluindo pias circulares, associadas a canais para a recolha de água e a realização de rituais com libações e envolvendo sacrifícios.
Vestígios escavados na rocha do monte Brasil (também já o haviam feito na ilha do Corvo) que indiciam, descobertas agora feitas, a “data do povoamento dos Açores pode não ser a que a história refere, mas outra dependente de estudos arqueológicos a estruturas e objectos existentes no arquipélago”-
Os alegados monumentos descobertos pela APIA nas zonas do “monte do Facho” e no Forte de São Diogo incluem ‘cadeiras’ escavadas na rocha, um tanque cerimonial coberto pela vegetação, dezenas de buracos de poste e ainda nichos destinados a acolher a estátua da divindade lunar cartaginesa. Serão dados a conhecer ao mundo em Évora no próximo mês de Setembro e em Florença (Itália) em 2012, no âmbito de encontros mundiais ligados à arqueologia.
Mas o presidente do Instituto Histórico da Ilha Terceira desvaloriza a tese dos investigadores, esclarecendo que as escavações na rocha que encontraram se destinavam apenas a servir de abrigos militares nos séculos XVI e XVII, e ainda para a recolha de água. “A facilidade de escavação fornecia abrigo às tropas – portuguesas e espanholas sem que fosse necessário construi-los na rocha do Monte Brasil”. No seu entender, os alegados templos “não passam de cafuas” junto a posições fortificadas, garantindo não haver “um único elemento que assegure a presença” nos Açores de civilizações anteriores ao século XV d.C. – quando se deu a descoberta e povoamento das ilhas açorianas. O conhecimento anterior a esse período é, conforme referiu, “muito rústico”.
“Entre fantasia e realidade”, para Francisco Maduro Dias, a visão apresentada pela APIA tem “muito mais de fantasia”. Sustenta a sua convicção com o facto de que os alegados túmulos e os rituais envolvendo sacrifícios sugerem situações “instaladas”, criando a ideia, errada, de que o território foi ocupado de uma forma organizada por populações antes do século XV. “Tal não corresponde à realidade, até porque os cartagineses nem eram particularmente exímios na arte da navegação”.

ANTES DE 1427
Factos indiciam conhecimento das ilhas

É hoje facto assente que os Açores não eram habitados aquando das primeiras expedições portuguesas, a partir de 1427, por Diogo de Silves (descobriu o arquipélago a partir do Grupo Oriental). Contudo, há factos que indiciam que a existência das ilhas já era conhecida. O cronista Diogo Domes de Sintra refere que o Infante D. Henrique mandou achar as ilhas antes de 1427, pelo que investigadores argumentam que não se manda achar aquilo que se ignora.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

JUSTIÇA E HISTÓRIA


Que função para a História?

Polémica
Família de Silva Pais queixa-se de difamação

PÚBLICO, 2011.Junho.26 | Tiago Bartolomeu Costa

"Os tribunais não fazem história. Ela é feita pelos historiadores"

A PIDE voltou ao tribunal por causa de uma peça de teatro. Fizemos perguntas aos historiadores sobre o caso Silva Pais: é possível determinar a responsabilidade do director da polícia? O julgamento pode fazer história?
A história não é feita pelos tribu¬nais. É esse o entendimento dos his¬toriadores ouvidos pelo PÚBLICO a propósito do julgamento em que a família do último director da PIDE/ DGS, a polícia política do Estado No-vo, se queixa de difamação, e que amanhã tem mais uma sessão no Campus da Justiça, em Lisboa.
Para os historiadores Rui Ramos, Irene Flunser Pimentel e António Costa Pinto, qualquer que seja o resultado do julgamento que opõe os sobrinhos do major Fernando da Silva Pais aos responsáveis pela apresentação de uma peça de teatro em 2007, daí não se poder fazer uma leitura nova da história.
A acusação argumenta que na peça A Filha Rebelde, sobre as relações de Silva Pais com a sua única filha, apresentada no Teatro Nacional D. Maria II, os réus incluíram frases que sugerem a culpabilidade de Silva Pais no assassinato do general Humberto Delgado, em 1965. Por isso, a autora da peça, Margarida da Fonseca Santos, e os ex-directores do teatro, Carlos Fragateiro e José Manuel Castanhei¬ra, incorreram no crime de difama¬ção da memória de pessoa falecida, uma vez que foram anuladas todas as acusações por morte de Silva Pais durante o julgamento militar que de¬correu em 1981. A defesa contrapõe a responsabilidade moral de Silva Pais: a PIDE era uma estrutura hierárquica e o director teria que saber das intenções da equipa que sequestrou e acabou por matar em Espanha o ex-candidato à Presidência da República, que se opôs a Américo Tomás, apoiado pelo regime liderado por António de Oliveira Salazar.
"Não são os juízes, nem os tribunais, os partidos políticos ou os poderes dominantes que fazem a história. Houve sempre um grande esforço nesse sentido e falharam sempre. A história é feita por historiadores", defende Rui Ramos, co-autor do livro História de Portugal e investigador do Instituto de Ciências Sociais, acrescentando que é preciso fazer uma distinção entre o que pertence "ao domínio judicial e ao domínio histórico". "Era bom que, em Portugal, se evitasse que fossem os poderes públicos a intentar as verdades históricas."
O caso é complexo por fazer correr em simultâneo um plano jurídico, defendido pela acusação, e um histórico, oposto pela defesa, afirma Irene Flunser Pimentel, Prémio Pessoa 2007 e autora do livro A PIDE/DGS (1945-1974).
E pergunta a historiadora: "Como vai o tribunal chegar a uma conclusão sobre o que de facto se passou no caso Humberto Delgado e eliminar taxativamente a autoria moral de Fernando da Silva Pais?" ¬ Pa¬ra Irene Pimentel, tal não é possível "porque, historiograficamente, não se sabe" o que aconteceu, "a não ser que apareçam provas diferentes" que o ilibem. Se ninguém pode dizer que a PIDE quis matar Humberto Delgado e que Salazar deu ordem para matar", também "não há nada que prove que o que Silva Pais disse em julgamento, em que a PIDE só queria raptar e trazê-lo para Portugal, seja verdade". "Não chega que uma pessoa acusada, que tem direito à sua defesa, diga que não se quis matar."
Justiça retroactiva
O historiador António Costa Pinto lembra que "as democracias não têm uma memória histórica unificada ofi-cialmente" e que Portugal não teve "um processo de justiça retroactivo", como fizeram muitas democracias contemporâneas, dando o exemplo da Argentina. Esses processos têm uma dupla característica: "A defesa dos direitos do homem e a punição simbólica, às vezes retroactiva, dos passados autoritários." O historiador, também do Instituto de Ciências So¬ciais, diz que Portugal, por oposição, se caracterizou "por um distancia¬mento, após alguma radicalidade mí¬nima no período pós-autoritário".
Não será através deste processo que se vai rever a história, uma vez que "é uma iniciativa da família", continua Costa Pinto. Esta ideia é se¬cundada por Rui Ramos, para quem este "é um caso descontextualizado da história" pela sua dimensão ju¬rídica: "Não penso que condicione o historiador ou legitime determi¬nadas visões em contraponto com outras."
Mas a ausência de um documento que comprove o que muitos assumem como memória colectiva poderá dar razão à acusação? "No campo jurídi¬co, sim, mas não no caso da memória historiográfica ou oficial das institui¬ções políticas", diz Costa Pinto. Irene Pimentel sublinha que "nem tudo é facilmente comprovável". E explica porquê: "Sendo a polícia secreta, que escondia que funcionava com estes métodos, não há documentação que permita dizer por A+B que Fernando da Silva Pais, ou outro qualquer, deu ordem para torturar ou matar."
Qual poderá ser a importância pa¬ra a história deste julgamento?
O carácter procedente deste pro¬cesso será avaliado pelo tribunal, "mas o trabalho de um historiador, sobretudo num caso delicado como este, é o de examinar e interpretar a documentação e formular hipóte-ses que permitam, a partir daquilo que sabemos, determinar também aquilo que não sabemos", explica Ramos. "O trabalho do historiador é também o de desconstruir e exa¬minar a memória colectiva e con¬frontá-la com outro tipo de docu¬mentação e indícios, o que o torna interessante e interpelante para o grande público."
O julgamento do historiador, ao contrário do do tribunal, diz Irene Pimentel, "não é para condenar ou absolver, mas tentar compreender, entendendo sempre que isso será provisório".

25 de Junho - Dia dos Refugiados




No programa de História - 9.º ano, há referência a Aristides de Sousa Mendes, o "Schindler" português, por ter passado milhares de vistos a fugitivos do jugo nazi. No entanto, avultam outros nomes de portugueses que devemos conhecer, irmanados num objectivo que contrariava as directivas do Estado português, isto é, ...

Ousaram desobedecer
In Expresso, 2011.Junho.25


Aristides de Sousa Mendes
Cônsul em Bordéus em 1940, ignorou as ordens de Salazar: deu dez mil vistos a judeus e o dobro a outros refugiados. Salvou, entre outros, a família real Habsburgo ou o governo belga no exílio.



Carlos de Sampayo Garrido
Enquanto embaixador de Portugal em Budapeste, entre 1939 e 1944, arrendou casas e apartamentos para salvar judeus húngaros do assassínio e da deportação.



Alberto Teixeira Branquinho
Sucede a Garrido na Hungria, em 1944, como encarregado de negócios. Autorizou a emissão de mais de 800 salvo-condutos.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Mombaça - Forte Jesus


Não foi sequer escolhido para uma das maravilhas portuguesas do mundo - concurso de 2009 - mas a UNESCO considerou-o Património da Humanidade.

QUÉNIA - FORTE português Património Mundial
in PÚBLICO, 2011.Junho.29

Uma fortificação de origem portuguesa do século XVI no Quénia foi classificada Património Mundial da UNESCO, de acordo com uma lista de novos sítios divulgados na segunda-feira por aquela organização. Para a UNESCO, o Forte Jesus em Mombaça, construído pelos portugueses entre 1593 e 1596 para proteger o porto daquela cidade queniana, é “um dos mais notáveis e bem conservados exemplos da fortificação militar portuguesa do século XVI e um marco na História deste tipo de construções”.

domingo, 26 de junho de 2011

Manuais de História

"A História não faz julgamento, antes procura interpretar..." Isto a propósito de

Manuais de História ainda contam o mundo à moda do Estado Novo
(PÚBLICO) 2011.Março.27

Os manuais de História do 3.º ciclo do ensino básico continuam a perpetuar "muitos dos discursos do Estado Novo". São apresentados de um modo "mais subtil e suavizado", mas constituem "um corpo ideológico" que continua a condicionar o modo como se fala do racismo, do nacionalismo e da "história dos outros". As constatações são da investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra Marta Araújo e têm como base uma análise dos cinco manuais de História mais vendidos, em 2008/2009, no 7.º, 8.º e 9.º anos de escolaridade.
Esta análise constituiu o ponto de partida para a investigação Raça e África em Portugal, que Marta Araújo lidera no CES. No âmbito deste projecto, que ficará concluído em Agosto, estão a ser realizadas também entrevistas a historiadores, estudantes universitários, professores e alunos do 3.º ciclo.
"Tentámos ir mais além da identificação das representações dominantes. Sabemos que são estereotipadas, existem imensos estudos que o mostram. Em vez de fazermos mais um, assumimo-los como ponto de partida e fomos antes tentar explorar a ideologia que lhes subjaz e o modo como através desta se naturalizam as relações de poder", explica a investigadora.
Como se conta o mundo então? "Garantindo a presença da Europa no seu centro." "Este eurocentrismo exprime uma pretensão universalizante, através da qual o modelo de desenvolvimento europeu ocidental é adoptado como padrão para avaliar todas as outras sociedades", explica Marta Araújo.
Clara Serrano, investigadora dos Centros de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra, também tem andado à volta dos manuais de História do ensino básico e à semelhança de Marta Araújo constatou que nestes livros " a história universal é estruturada e apresentada a partir de uma perspectiva marcadamente eurocentrista". "A história dos outros continentes é muito pouco leccionada - e, quando é, é-o como efeito secundário do conhecimento de actividades de descobrimento e colonização protagonizadas por povos europeus", explicita. Não é um exclusivo: "É curioso verificar que os próprios manuais dos países não europeus não conseguiram escapar a esta linha europeísta."
Para Marta Araújo, o eurocentrismo como ideologia ganha eficácia "através da despolitização". Por exemplo, a guerra colonial tende a ser descrita "não como uma guerra de libertação, mas sim como uma guerra de guerrilha sem um propósito". Há livros em que as únicas imagens reproduzidas são a de soldados portugueses mortos, uma forma, segundo a investigadora, de reforçar uma narrativa recorrente. "Também a encontramos, por exemplo, nos capítulos da Reconquista da Península Ibérica. E a imagem que se faz passar é que nós, portugueses, fomos forçados a sermos violentos, enquanto eles, sejam angolanos ou mouros, são naturalmente violentos e bárbaros."
É o que está patente nestes trechos apresentados em manuais do 7.º e 9.º ano e que são reproduzidos pela investigadora num artigo publicado na revista Estudos de Sociologia.
Sobre a Reconquista: "No século VIII, os Cristãos viram a sua vida quotidiana - em si bastante instável - ameaçada pela chegada dos Muçulmanos. Em consequência os Cristãos estabeleceram contacto com os Cruzados de outros reinos Cristãos Europeus com os quais reuniram esforços para recuperaram os territórios perdidos(...)."
Sobre a guerra colonial: "Um sentimento generalizado de medo entre os colonos levou-os a matar muitos indígenas enquanto outros fugiram, indo juntar-se aos guerrilheiros. Posteriormente, tribos do Norte de Angola assassinaram centenas de colonos."
"Há sempre um jogo que naturaliza a nossa violência e que esvazia o lado político da luta deles", frisa Marta Araújo.
"Ranking dos colonialismos"
Num manual do 8.º ano explica-se que os portugueses foram para África, porque queriam fazer comércio. O modo como se narra o que aconteceu então e depois acaba por dar corpo a uma espécie de "ranking dos colonialismos". "O racismo é sempre tido como um fenómeno circunscrito e associado aos impérios francês e britânico." As atrocidades ficam sobretudo por conta dos espanhóis. E a nós atribuem-nos uma espécie de "colonialismo suave", uma leitura que, segundo Marta Araújo, voltou a ganhar força nos últimos dez anos.
Com a ênfase europeia no multiculturalismo, Portugal volta a apresentar-se como tendo um papel pioneiro, ressuscitando "o discurso lusotropicalista que foi apropriado pelo Estado Novo" - essa ideia de que os portugueses sempre tiveram melhor capacidade de adaptação a outros povos e culturas. "Nunca se discute o fenómeno do racismo. Ou é tido como um fenómeno circunscrito a outros, ou como uma atitude individual, ou como ligado a situações extremas, como o nazismo", frisa.Não por acaso, acrescenta, na maioria dos manuais não existe uma única referência aos ciganos: "É uma parte da população que desapareceu." Os manuais escolares, sendo um dos principais recursos utilizados nas salas de aulas, "dizem bastante sobre o modo como se ensina a História nas escolas", afirma Clara Serrano.
Existe uma "simplificação" que é potenciada pela extensão dos programas em vigor e a carga horária reduzida atribuída à disciplina. E esta simplificação contribui para o êxito de um propósito, adverte: "Não nos podemos esquecer que os manuais são transmissores de valores que a instituição escolar e, em última análise, o poder instituído pretendem transmitir. Por isso, a escolha da linguagem, do estilo, a selecção dos assuntos e dos textos, a organização e hierarquização dos conteúdos não será de todo inocente."

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Ainda o Coelho, mas ligado à colonização de Porto Santo



Darwin pensava que os coelhos trazidos para a ilha eram domesticados (Carlos Lopes (arquivo)

Na Ilha do Porto Santo os coelhos descendem todos de um só casal
(PÚBLICO) 2011.Jan.31 | Teresa Firmino
O episódio está no livro Décadas da Ásia, de João de Barros, de 1552, em que o historiador relatava os feitos dos Descobrimentos: no navio de Bartolomeu Perestrelo, que em 1419 navegou para a ilha do Porto Santo com a missão de a povoar, seguia "uma coelha prenha metida numa gaiola que pelo mar acertou parir".
Uma vez na ilha, o objectivo era que os coelhos a povoassem e servissem de alimento aos colonizadores. Mas a sua multiplicação foi tal que era impossível cultivar a terra. Roíam tudo, dizia João de Barros. Também Charles Darwin se interessou pelos famosos coelhos do Porto Santo, como mostra a exposição A Evolução de Darwin, inaugurada amanhã, 1 de Fevereiro, na Casa Andresen, no Jardim Botânico do Porto (pode ver-se até 17 de Julho).
No livro A Variação dos Animais e das Plantas sob Domesticação, o pai da teoria da evolução pela selecção natural dizia que os coelhos do Porto Santo resultaram de animais já domesticados. Mas Darwin estava errado, como mostraram os estudos genéticos de Nuno Ferrand de Almeida, do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos, no Porto.
"Esta é uma fortíssima prova de que nessa altura – 1419 – ainda não teriam chegado a Portugal as raças domesticadas de coelho", diz Ferrand de Almeida. Os seus estudos genéticos também concluíram que toda a população actual de coelhos do Porto Santo descende de um só casal – pelo que tudo começou com a coelha prenha no navio de Bartolomeu Perestrelo.

DOMESTICAÇÃO DO COELHO


Curiosidade atrás de curiosidade...

Os sinais claros da domesticação do coelho só surgiram a partir de meados do século XV (Punit Paranjpe/Reuters (arquivo)

Cientistas portugueses resolvem o enigmaQuem domesticou o coelho? Os monges da Provença, diz a genética
(PÚBLICO) 2011.Jan.31 | Por Teresa Firmino
É o único mamífero domesticado só na Europa ocidental, e numa fase tardia. A documentação histórica já sugeria o papel dos monges no processo. Tudo porque o papa Gregório I decidiu que os coelhos recém-nascidos não eram carne, pelo que podiam comer-se na Quaresma. A genética confirma agora esta história.
Durante grande parte da sua história, o coelho-europeu, ou coelho-comum, viveu apenas na Península Ibérica e no Sul de França. Hoje está espalhado por quase todos os cantos da Terra, tanto a sua forma selvagem como a doméstica. Mas onde e quando começou a domesticação do coelho? Duas hipóteses têm sido avançadas: tudo terá começado com os romanos na Península Ibérica, há cerca de dois mil anos, ou então terá sido há 1400 anos numa região que actualmente integra o Sul de França e os monges tiveram um papel principal. A equipa de Nuno Ferrand de Almeida, coordenador do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos (Cibio) da Universidade do Porto, acaba de dar a resposta: foi nos mosteiros da Provença.
O coelho-europeu, ou Oryctolagus cuniculus, o nome científico da espécie, surgiu na Península Ibérica há cerca de dois milhões de anos e é caçado pelos humanos como alimento há milhares de anos. Tem duas subespécies, que no pico da última glaciação, há 20 mil anos, ficaram confinadas a dois refúgios: enquanto a Oryctolagus cuniculus cuniculus habitava em França e no Nordeste da Península Ibérica, a Oryctolagus cuniculus algirus vivia no Sudoeste da Península Ibérica, incluindo o Sul de Portugal.
O primeiro registo que nos chegou da abundância do coelho no Sul da Península Ibérica é dos fenícios, quando vieram até às suas costas há três mil anos, para trocas comerciais. "Viram milhares de coelhos, que confundiram com o damão-do-cabo, que era abundante nas costas das cidades fenícias", conta Nuno Ferrand de Almeida. "Esse registo poderá estar na origem do nome Espanha, que quererá dizer "terra de coelhos": a designação de "i-shephan-im", ou terra de damões-do-cabo, que na verdade eram os coelhos, seria depois latinizada para dar Hispânia, e mais tarde Espanha."
Quando voltavam para sua terra, no Médio Oriente, os fenícios levavam com eles o coelho e espalharam-no pela bacia do Mediterrâneo, por exemplo pelas ilhas Baleares e pelo Norte de África.
Mais tarde vieram os romanos, que se instalaram durante séculos na Península Ibérica, e também levaram o coelho para outras paragens na Europa. "A primeira tentativa de controlar a reprodução do coelho terá ocorrido na Península Ibérica, um século antes de Cristo", conta o biólogo Miguel Carneiro, também do Cibio, e autor principal do artigo com esta descoberta, publicado este mês na edição online da revista britânica Molecular Biology and Evolution.
A partir da ocupação romana passa a haver múltiplas referências aos coelhos. "Uma das mais célebres é a de Plínio, o Velho, na sua História Natural, no primeiro século da nossa era, onde já se refere o hábito de consumir fetos dos coelhos, bem como o facto de produzirem imensos prejuízos na agricultura. Também durante Adriano, um dos mais célebres imperadores romanos - imortalizado por Marguerite Yourcenar em Memórias de Adriano -, circulavam na península moedas com coelhos cunhados na sua face", acrescenta Ferrand de Almeida. "A partir dessa altura há referências permanentes a estruturas belíssimas chamadas "leporaria", que eram cercados feitos de pedras onde os coelhos eram mantidos para serem usados na caça e na alimentação. Há muitos vestígios arqueológicos dessas estruturas. Esta seria uma das hipóteses para a domesticação do coelho ter ocorrido na Península Ibérica."
Carne que não é carne
No entanto, outros registos históricos sugeriam que a domesticação tinha ocorrido mais tarde, por volta do ano 600, nos mosteiros da Provença. A fundamentar esta suposição encontra-se uma decisão do papa Gregório I, que tinha sido monge beneditino, em que considera que os fetos e as crias recém-nascidas de coelho não eram carne, pelo que podiam comer-se durante o jejum da Quaresma. E assim a criação de coelhos difundiu-se nos mosteiros da Provença. "Há muitíssimos documentos históricos que atestam a frequente troca de coelhos entre abadias, e mesmo com países como a Inglaterra. Este processo poderia ter levado à domesticação do coelho e seria uma hipótese de domesticação realizada fora da península, proveniente das populações selvagens do Sul de França", refere Ferrand de Almeida. Tenham sido os romanos ou os monges da Provença, os sinais claros da domesticação do coelho só surgiram muito mais tarde, a partir de meados do século XV. Em iluminuras e pinturas, começaram a aparecer os primeiros coelhos com cores diferentes, desde brancos a avermelhados, em vez da cor parda dos selvagens.
Um dos quadros mais célebres que representa um coelho branco é de Ticiano, Madona e Menino com Santa Catarina, também conhecido como A Virgem do Coelho, de cerca de 1530, que está no Museu do Louvre. "Esses mutantes de cor poderão corresponder a um processo de domesticação já terminado. E a partir daí o coelho doméstico difundiu-se por todo o mundo e teve um sucesso enorme", explica Ferrand de Almeida.
No século XVI, há registos de coelhos de vários tamanhos e cores em França, Itália, Flandres ou Inglaterra, o que sugere que a sua domesticação estava já concluída nessa altura.
Exclusivo da Europa
Mas qual das duas hipóteses para a domesticação do coelho, compatíveis com os registos históricos, está afinal certa?
A equipa Ferrand de Almeida começou à procura de uma resposta na genética, há cerca de uma década, com cientistas de outros países, nomeadamente de França. Já nessa altura os resultados apontavam para os monges da Provença. "Havia indicações genéticas que sustentavam essa hipótese, mas eram muito fragmentadas", diz Ferrand de Almeida.
Agora foi feita uma análise genética mais aprofundada, no trabalho de doutoramento de Miguel Carneiro, orientado por Ferrand de Almeida. Em colaboração com cientistas franceses e norte-americanos, estudaram-se mais regiões no genoma do coelho, comparando-se animais domésticos com populações das duas subespécies selvagens na Península Ibérica e no Sul de França.
O ADN dos coelhos corroborou a história relativa aos monges. "A origem da domesticação do coelho não está na Península Ibérica, mas no Sul de França. Os monges iniciaram a domesticação do coelho que hoje temos em todo o lado, há cerca de 1400 anos. Os nossos dados suportam estes registos históricos", sublinha Miguel Carneiro. "O coelho é o único mamífero domesticado exclusivamente na Europa. Pensa-se que o porco foi domesticado por toda a Eurásia."
A Oryctolagus cuniculus cuniculus, que era a única subespécie presente no Sul de França naquela época, é assim o antepassado directo dos coelhos domésticos. O cenário de um único sítio para a origem da domesticação do coelho contrasta com o que ocorreu com a maioria dos animais - ou foram domesticados em várias regiões, como o cão, ou a partir de várias espécies ou subespécies, como o burro, em África. Em comparação com muitos outros mamíferos, domesticados há mais de cinco mil anos, o caso do coelho também é muito recente. No cão, pelo contrário, tal pode mesmo ter começado há 14 mil anos. Outro aspecto invulgar é o facto de o antepassado do coelho doméstico ainda existir, ao contrário do que acontece noutros casos, como a vaca (os últimos auroques extinguiram-se no século XVII, na Europa Central).
Menos de 1200 animais
E de quantos coelhos selvagens descendem todos os domésticos que existem hoje no mundo? A equipa também pôde determinar esse número, agora que já se sabe quer onde e quando os coelhos foram domesticados (a partir do ano 600), quer quando o processo estava terminado (século XVI). Tendo em conta a diversidade genética dos coelhos domésticos actuais, todos descendem de 1200 animais, no máximo, se a domesticação foi lenta. Ou de apenas 14 coelhos, no mínimo, se foi muito rápida. "Provavelmente foram mais de 14. Terá sido um processo mais lento", diz Ferrand de Almeida. Coelhos bravos e domésticos pertencem à mesma espécie, os últimos apenas se consideram uma população diferente, seleccionada para ter características especiais. Entre essas características inclui-se um comportamento mais dócil e a reprodução ao longo do ano todo, enquanto o selvagem só se reproduz durante quatro a cinco meses. Além das variações de cor, o tamanho do coelho doméstico pode ir dos 800 gramas a dez quilos (o bravo tem pouco mais de um quilo). O tamanho das orelhas também muda bastante.
Hoje há pelo mundo fora mais de 200 variedades de coelhos domésticos, a maioria das quais surgiu nos últimos 200 anos. "Na época vitoriana havia uma paixão pelos animais. Deu-se uma explosão da criação de animais, desde cães, gatos, até canários", realça Miguel Carneiro.
Além de grande relevância económica, o coelho doméstico é muito usado como modelo de estudos em toxicologia, embriologia, osteoporose ou evolução.
Pela sua parte, Ferrand de Almeida vai lançar este ano um projecto de investigação do genoma do coelho com o Instituto Broad (ligado ao MIT e à Universidade de Harvard), nos Estados Unidos, e com a Universidade de Upsala, na Suécia. O genoma do coelho já foi sequenciado pelo Instituto Broad, há menos de dois anos, e agora a ideia é sequenciar genomas de diferentes raças de origens distintas. "Queremos perceber o efeito da domesticação nas diferentes raças", explica o coordenador do Cibio.
Outra coisa que vai estudar-se neste projecto é o caminho evolutivo que as duas subespécies de coelhos estão a tomar. A perda de fertilidade quando ambas se cruzam reprodutivamente é um sinal de que estão a separar-se, pelo que os cientistas podem estudar a formação das espécies em tempo real. "Estão a caminho de se tornarem duas espécies diferentes. É um modelo fabuloso para o estudo da origem das espécies", diz Ferrand de Almeida.
Para os próximos tempos, esperam-se então mais capítulos da história do coelho, que "é tão rica", remata Ferrand de Almeida.

domingo, 12 de junho de 2011

TÚMULO DE CAMÕES NO MOSTEIRO DOS JERÓNIMOS

Mausoléu instalado no Mosteiro dos Jerónimos, atrai atenção de muitos turistas

Ossadas não serão de Luís de Camões
in Correio da Manhã, 2011.Junho.10 | SOFIA CANELAS DE CASTRO

A tese não é nova mas volta agora a ser defendida por Vítor Aguiar e Silva, especialista em estudos camonianos, que diz que, “com grande probabilidade, as ossadas guardadas no mausoléu dos Jerónimos não são de Camões”.
Em páginas referentes a Luís de Camões, refere-se isso mesmo. Após relembrar o rumo do corpo do autor de 'Os Lusíadas' – desde o seu sepultamento, em 1580, na Igreja de Sant’Ana (Lisboa), até à trasladação para os Jerónimos –, salienta¬-se que “a ossada depositada em 1880 numa tumba no Mos¬teiro dos Jerónimos é, com toda a probabilidade, de outra pessoa”.
Aguiar e Silva reforça ainda que, “no estreito rigor histórico”, nin¬guém sabe ao certo onde estão os restos mortais do poeta. Afinal, além de “não se saber exactamente onde foi colocado o cadáver, se dentro ou fora de igreja ou até numa fossa”, três séculos passaram até à trasladação. E, pelo meio, o terramoto de 1775 provocou grande destruição na igre¬ja e área envolvente. À data da tras¬ladação, em 1880, formou-se uma comissão encomendada por Rodrigo da Fonseca, ministro do Reino, para encontrar as ossadas de Ca¬mões e lhes dar última morada con¬digna. A própria comissão, no rela¬tório final, admite que alguns dos ossos encontrados “eram pois sem dúvida de Luiz de Camões; mas quaes, se nem era possível distin¬guir a sepultura”.
“É uma dúvida antiga, que sempre subsistiu, ainda que não retire o valor simbólico do túmulo”, frisa ao CM Gonçalo Couceiro, director do IGESPAR – Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Ar¬queológico (que tutela o Mosteiro dos Jerónimos), lembrando um poema de Jorge de Sena. “Nada tereis, mas nada: nem os ossos, que um vosso esqueleto há-de ser buscado, para passar por meu”; lê-se no final de ‘Camões dirige-se aos seus Contemporâneos’. *COM LUSA
(A imagem é retirada de http://camoes9a.no.sapo.pt/biografia.htm)

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Guerra Colonial

Já lá vão 50 anos, meio século de muitas memórias. Em 1961, determinou-se o «Para Angola, rapidamente e em força!» na sequência do «Orgulhosamente sós!». Duas decisões que ainda hoje cavam fundo em muitos portugueses.


Os maus acessos tinham deixado muitas regiões fora do controlo das autoridades coloniais. As estradas e pontes cortadas dificultaram a progressão das tropas portuguesas. Os fazendeiros isolados procuraram refúgio em núcleos populacionais maiores. Esta imagem está em exposição no Museu do Combatente (Cortesia Museu do Combatente)

Angola 1961
O terror maciço e cru
(
PÚBLICO) 2011.Março.14 | João Manuel Rocha

Os massacres que marcaram o início da guerra em Angola começaram há 50 anos. Havia indícios de que se preparava um levantamento, mas ninguém esperava tamanha violência. Os relatos de uma sublevação de cariz tribal dão conta de barbaridades indescritíveis. A revolta bacongo não poupa negros de outras origens. Os mortos são aos milhares, centenas deles brancos. O "15 de Março" prolonga-se até Outubro, já depois do "rapidamente e em força" proclamado por Salazar

Só em Setembro, seis meses depois, José Rocha Dinis conseguiu ir a S. José do Encoje, Nova Caipemba, a uns cem quilómetros de Carmona, no Norte de Angola. O que ele e 15 a 20 voluntários viram foram esqueletos que sobravam da decomposição de cadáveres acelerada pelo calor e humidade. Certeza de quem era quem, só a teve sobre um capataz e a mulher: os restos mortais ainda estavam sobre o colchão apodrecido no chão da casa em que dormiam.
Na fazenda do distrito do Uíge estavam por enterrar mais de meia centena de trabalhadores - negros, mestiços e dois brancos, homens, mulheres e crianças. Meio século depois, José, hoje com 89 anos, tem bem presente essa viagem de reconhecimento a uma boa dúzia de propriedades da região feita a partir de Carmona, com voluntários idos de Luanda. Mas não quer falar de tudo o que viveu naquele ano em que a violência bárbara irrompeu no Norte de Angola, com incidência muito forte na zona dos Dembos. "Vimos ossadas em todas as fazendas", diz apenas.
Os ataques dos meses anteriores, a insegurança, a falta de homens armados para uma expedição, a incerteza sobre o que iriam encontrar e os maus acessos tinham deixado aquela e outras regiões fora do controlo das autoridades coloniais nos seis meses passados sobre o 15 de Março de 1961. Naquele dia, há exactamente 50 anos, ao alvorecer, sob a bandeira da União das Populações de Angola (UPA), a violência irrompeu de modo bárbaro. "Mata! Mata! UPA! UPA!", ecoou no Norte de Angola. O número de mortos está longe de ser consensual, mas as estimativas mais referidas apontam para cerca de 800 brancos, em muitos casos gente pobre e humilde, e milhares de trabalhadores africanos recrutados noutras regiões da colónia.
Munidos de "catanas e armas de fogo rudimentares", revoltosos "assaltam povoações e fazendas", em regiões de acesso difícil. Sto. António do Zaire, S. Salvador do Congo e Maquela do Zombo, próximo da fronteira com o ex-Congo belga, mas também Ambrizete, Negaje, Mucaba, Sanza-Pombo são alvo de ataques. "Toda a baixa do Cassange está em alvoroço" e os assaltantes estão às portas de Carmona. "São claros para as autoridades os propósitos de implantar o terror", escreveuFranco Nogueira, o diplomata que, em Maio seguinte, se tornaria ministro dos Negócios Estrangeiros.
"Em menos de 48 horas, pelos distritos do Zaire e do Uíge é a devastação maldita. Plantações e casas solitárias são saqueadas e incendiadas; aldeias são arrasadas; é posto cerco a vilas e pequenas povoações, cortando-se-lhes os abastecimentos; vias e meios de comunicação ficam destruídos", diz o relato de Franco Nogueira no livro Salazar volume V - A Resistência (ed. Civilização).
"Não se faz distinção de etnias, nem de sexo, nem de idades tão-pouco. É o terror, maciço e cru", refere Franco Nogueira na sua descrição, considerada "uma boa síntese" dos acontecimentos por Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus, autores do recém-editado Angola 61: Guerra Colonial, Causas e Consequências, o 4 de Fevereiro e o 15 de Março (Texto Editora). "Como nos tempos remotos das grandes barbáries, são assassinados homens, mulheres, velhos e crianças, autoridades administrativas, agentes da ordem, brancos, negros e mestiços; ou fuzilados; ou queimados dentro de casas e cubatas: ou esquartejados, e degolados; ou serrados vivos", escreveu o embaixador.
Os relatos do horror abundam. "Ao longo do caminho vimos enorme morticínio de pessoas brancas e pretas, sem braços, sem pernas, sem olhos", contou a angolana Ana Inglês, filha de um pastor protestante e depois presa política, a Dalila Mateus, investigadora do Instituro Superior de Ciências do Trabalho e Empresa (ISCTE), no livro Memórias do Colonialismo e da Guerra(ed. Asa). Os ataques, o medo e a insegurança imperam numa área equivalente à de Portugal Continental.
"Nas povoações", escreveram os autores deAngola 61, os atacantes "entravam mal as casas comerciais abriam as suas portas, atacando homens, mulheres e crianças com catanas, que traziam escondidas. E nas fazendas, faziam-no durante a formatura habitual da manhã, assassinando" proprietários e outros brancos, para além de nativos que lhes eram fiéis. "Estávamos irritados com tanto tempo de opressão", disse um dos revoltosos na série documental A Guerra, realizada pelo jornalista Joaquim Furtado para a RTP.
A partir de um documento constante do arquivo de Salazar, e de diversas outras fontes, o casal Mateus descreve como características do levantamento a sua "rapidez fulminante", a "violência e ferocidade de processos", os "barbarismos cometidos contra brancos, mestiços e alguns pretos", o "fanatismo dos atacantes convencidos da sua invulnerabilidade", o "pânico das populações brancas, acrescido ao constatarem que, entre os que colaboravam nesses ataques, havia criados e cipaios".
O carácter tribal
Para Dalila e Álvaro Mateus, os contornos de violência do 15 de Março terão sido o reflexo de um conjunto de factores: "Ocarácter tribal da UPA, as contradições no seu seio, a impreparação dos seus quadros, as debilidades orgânicas, a falta de disciplina, as dificuldades em apaziguar ódios recalcados e em suster ímpetos primitivos."
O "carácter tribal" da revolta desencadeada pela UPA, "um movimento com profundas raízes" nos bacongos, manifesta-se, segundo os autores do mais recente estudo sobre as revoltas de há 50 anos em Angola, no número de mortos africanos, "uns quatro a cinco mil", designadamente ovimbundos e quimbundos. "Os factos demonstram que se procura a independência para os bacongos, porventura com o propósito de reconstituir o reino de S. Salvador", disseram ao P2.
"Foi um movimento completamente desvairado, racista, com todo aquele ingrediente de raiva de ódio mal dirigido", afirma Adelino Torres, professor jubilado do Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG), à época um jovem de 20 anos residente em Luanda, a preparar-se para estudar Direito em Lisboa. A consciência anticolonial que já então o animava não o impede de considerar que "foi uma barbaridade imperdoável". " Por muitas razões que os africanos tivessem contra o colonialismo, e tinham." Mais tarde, chegou a conhecer na Argélia representantes da Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA), designação depois adoptada pela UPA. "Constatei que não tinham nada na cabeça. Fiquei com uma impressão deplorável dessa gente", afirma.
Angola estava em ebulição, como fora prenunciado pelos ataques de 4 de Fevereiro em Luanda, e, antes disso, pela revolta contra os abusos laborais no cultivo do algodão na Baixa de Cassange. "Nos círculos do Governo central, na alta administração, toma-se então consciência de que em Angola há uma situação de guerra", reconheceu Franco Nogueira. Para o historiador Filipe Ribeiro de Meneses, tratou-se de uma tentativa de "extirpar a presença portuguesa do Norte de Angola". O "maior fracasso de Salazar ao longo das quatro décadas no poder terá sido a sua incapacidade de proteger a população branca e os seus trabalhadores no Norte de Angola em 1961", escreveu na sua biografia sobre o chefe do Estado Novo, publicada no ano passado pela D. Quixote. O efectivo militar à data do levantamento seria de 7800 homens para todo o território angolano.
Os sinais de que alguma coisa estaria para acontecer não faltavam. Não era só o ambiente internacional favorável à descolonização nem a vaga de 17 independências que varrera África no ano anterior. Os próprios colonos, pelo menos parte deles, não estariam alheios ao clima de pré-insurreição. Mas Salazar desvalorizaria informações obtidas por via diplomática norte-americana sobre o risco de incidentes, bem como relatórios da PIDE que davam conta da iminência de ataques.
"Fomos apanhados de surpresa, mas havia indícios de que queriam fazer alguma coisa. Sabíamos que mandavam fulanos que passavam pelos povos a fazer doutrinação e a dizer: "É preciso correr com os brancos"", conta José Rocha Dinis, que recorda uma conversa, em Novembro de 1960, na fazenda de Nova Caipemba, com um pequeno fazendeiro negro, antigo cabo do Exército: "Está-se a organizar uma matança. Prepare-se, avise as autoridades, mas não diga que fui eu que disse". Foi o que Rocha Dinis fez: alertou o chefe do posto administrativo, que não lhe terá dado ouvidos. O antigo cabo seria um dos mortos de 1961.
Sementes de revolta
As sementes da revolta vinham a ser lançadas há algum tempo. Os autores de Angola 61 lembram declarações de Holden Roberto, líder da UPA, segundo o qual em 1959, aquando de manifestações pela independência do ainda Congo belga, dois mil a três mil angolanos foram expulsos da colónia e entregues às autoridades portuguesas. Esses repatriados, afirmam, foram enviados para as fazendas, "onde desenvolveram uma actividade política e propagandística". Por altura do levantamento no Norte, "terão entrado em Angola mais umas centenas de elementos da UPA", disseram ao P2. A organização adoptou também uma "política de recrutamento forçado", e o "comando dos revoltosos foi, em regra, das autoridades tradicionais".
O historiador angolano Carlos Pacheco tem menos certezas. Está convicto de que "as coisas fugiram ao controlo da UPA em Leopoldville" e de que "não foi só" a organização a protagonizar os ataques. Chegou a confrontar Holden Roberto com essa tese. "Sempre senti um grande constrangimento da parte dele", afirma. O autor do livro Angola - Um gigante com pés de barro acredita que a Abako, Aliança dos Bacongos, "esteve no terreno" e refere um projecto do seu líder, Joseph Kasavubu, primeiro Presidente da actual República Democrática do Congo, de "tomar conta do Baixo Congo".
Se as autoridades portuguesas admitiam uma revolta, não esperariam, contudo, a dimensão nem os contornos que assumiu. "O que perturbou militares, polícias e autoridades administrativas não foi a rebelião em si, mas a sua intensidade, rapidez e selvajaria", consideram Dalila e Álvaro Mateus. "Os governantes de então não quiseram tirar a lição dos acontecimentos, pois pensavam que tal situação não era possível, dada a excelência do seu colonialismo", afirmam. Rocha Dinis parece dar-lhes razão: "Tínhamos a ilusão de que não ia acontecer nada, porque nós tratávamo-los melhor do que os belgas. O Congo belga olhava para o preto como inferior."
Face à brutalidade do levantamento, cujas imagens correm mundo, Holden Roberto, em Nova Iorque - onde, no Conselho de Segurança, os Estados Unidos votam, nesse mesmo dia, pela primeira vez, contra a política colonial portuguesa - hesita na reivindicação dos ataques. "Vi imagens que não me agradaram". "Fomos ultrapassados", dirá na série A Guerra. Mas acaba por assumir a autoria, aparentemente por receio de que o rival MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola, o partido no poder desde a independência) o fizesse, como acontecera com o 4 de Fevereiro em Luanda.
Os ataques e o medo prolongam-se muito para além dos primeiros dias. Os fazendeiros isolados procuram refúgio em núcleos populacionais maiores. "Sempre que possível, normalmente em pequenas vilas e lugarejos, os colonos e as forças de segurança locais criavam milícias para se defenderem enquanto esperavam pela chegada da polícia e das tropas regulares", segundo Ribeiro de Meneses. Mas "passaram-se semanas sem mudanças significativas no terreno e com as autoridades a temerem revoltas violentas noutras regiões de Angola - fosse em Cabinda, fosse no Sul".
As estradas e pontes cortadas dificultam a progressão das tropas portuguesas. E mesmo quando a evacuação se tornou possível", muitos colonos ficaram em "ilhotas de teimosia", como, segundo Meneses, lhes chamou Jorge Jardim, empresário influente junto de Salazar. "Mas para além dessas ilhotas, havia áreas muito mais vastas que se encontravam agora fora do controlo português", escreveu o historiador.
A fazenda do sogro, a 14 quilómetros do Songo e que José Rocha Dinis administrava, é evacuada já no final de Abril e será assaltada a 2 de Maio. Dois dias depois, é a própria vila a ser atacada, numa acção que terá provocado a morte de 220 atacantes. Fazendeiro e proprietário voltarão em Julho para as colheitas. Noutros lugares a insegurança será mais longa. Ao longo de meses há notícias de ataques e confrontos com os rebeldes, que vão perdendo fôlego.
"A política de recrutamento forçado da UPA só poderia resultar no curto prazo e se a vitória fosse rápida. A médio prazo e depois dos primeiros reveses, no Verão de 1961, os rebeldes ficaram sem dirigentes, sem ordens, sem ajuda, o que levou a revolta a transformar-se numa anarquia. E os combatentes recrutados à força começaram a fugir e a render-se", disseram ao P2 Dalila e Álvaro Mateus.
Em Outubro, com a recuperação de Caiongo, distrito de Uíge, as autoridades coloniais retomam oficialmente o controlo da situação, ainda que, segundo os dois investigadores, o 15 de Março se tenha "prolongado por quatro anos", até ao momento em que, de acordo com um relatório do cônsul belga ao seu Governo, "o Norte fica sob controlo total das tropas portuguesas, embora os guerrilheiros da UPA permaneçam no terreno". É também em Outubro que grupos de africanos revoltosos que se tinham refugiado nas matas começam a entregar-se às autoridades coloniais. A guerra continuará, no modo de guerrilha.
O medo dos negros
Logo após os primeiros ataques, começam a afluir a Luanda refugiados, muitos dos quais apenas fazem da cidade ponto de trânsito para a Metrópole, a vulgar designação de Portugal continental. Adelino Torres lembra-se de colonos a chegarem à cidade, "sem nada, aterrorizados". Lembra-se também do clima de medo. "Toda a gente correu para as casas de armas a comprar pistolas, com receio de apanhar uma catanada."
Por esse tempo, havia quem visse em cada negro um terrorista. "Bastava alguém ter uma epiderme um pouco mais escura", afirma Carlos Pacheco, à época com 16 anos, que recorda uma situação vivida em sua casa, na capital de Angola: "A minha mãe recomendava ao nosso empregado, que era negro: "Não saias de casa." Arriscava-se, ao transpor os muros da casa, a ser morto." Foi assim durante meses. "Se já havia violência provocada pelo processo colonizador, a violência a partir daí foi ainda maior."
Franco Nogueira também se referiu ao alargamento do fosso racial: "Os brancos vêem em cada negro um possível terrorista, os negros vêem em cada branco um homem que se quer vingar e que agora mata sem hesitar. Deste modo, e além das atrocidades dos assaltantes, assumem gravidade o ataque preventivo e a retaliação indiscriminada de brancos sobre negros e destes sobre aqueles. Homem a homem, nas ruas, nos empregos, em toda a parte, espiam-se com rancor, e a um gesto equívoco é abatido o suposto adversário."
O "terror negro" dá lugar ao "terror branco". Dalila e Álvaro Mateus referem os "massacres e matanças indiscriminadas" que se seguiram ao levantamento da UPA, atestados por ofícios e relatórios de autoridades administrativas e militares. Há referências a "troféus de guerra", designadamente "frascos de álcool com dedos, orelhas e até cabeças de negros".
O "horror dos massacres criou o pânico" entre os brancos de Angola. E em Portugal as notícias da "barbárie e do morticínio" "abalaram as consciências e reforçaram o regime, apostado na guerra como solução para o problema colonial", consideram os autores de Angola 61. O rasto de sangue e o extremar de posições tornava mais difícil um futuro diferente em Angola. E nas outras colónias portuguesas em África.

Domesticação do coelho


Os sinais claros da domesticação do coelho só surgiram a partir de meados do século XV (Punit Paranjpe/Reuters (arquivo)

Curiosidade dupla: onde e porquê.

Cientistas portugueses resolvem o enigma
Quem domesticou o coelho? Os monges da Provença, diz a genética

(PÚBLICO) 2011.Jan.31 | Por Teresa Firmino

É o único mamífero domesticado só na Europa ocidental, e numa fase tardia. A documentação histórica já sugeria o papel dos monges no processo. Tudo porque o papa Gregório I decidiu que os coelhos recém-nascidos não eram carne, pelo que podiam comer-se na Quaresma. A genética confirma agora esta história.
Durante grande parte da sua história, o coelho-europeu, ou coelho-comum, viveu apenas na Península Ibérica e no Sul de França. Hoje está espalhado por quase todos os cantos da Terra, tanto a sua forma selvagem como a doméstica. Mas onde e quando começou a domesticação do coelho? Duas hipóteses têm sido avançadas: tudo terá começado com os romanos na Península Ibérica, há cerca de dois mil anos, ou então terá sido há 1400 anos numa região que actualmente integra o Sul de França e os monges tiveram um papel principal. A equipa de Nuno Ferrand de Almeida, coordenador do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos (Cibio) da Universidade do Porto, acaba de dar a resposta: foi nos mosteiros da Provença.
O coelho-europeu, ou Oryctolagus cuniculus, o nome científico da espécie, surgiu na Península Ibérica há cerca de dois milhões de anos e é caçado pelos humanos como alimento há milhares de anos. Tem duas subespécies, que no pico da última glaciação, há 20 mil anos, ficaram confinadas a dois refúgios: enquanto a Oryctolagus cuniculus cuniculus habitava em França e no Nordeste da Península Ibérica, a Oryctolagus cuniculus algirus vivia no Sudoeste da Península Ibérica, incluindo o Sul de Portugal.
O primeiro registo que nos chegou da abundância do coelho no Sul da Península Ibérica é dos fenícios, quando vieram até às suas costas há três mil anos, para trocas comerciais. "Viram milhares de coelhos, que confundiram com o damão-do-cabo, que era abundante nas costas das cidades fenícias", conta Nuno Ferrand de Almeida. "Esse registo poderá estar na origem do nome Espanha, que quererá dizer "terra de coelhos": a designação de "i-shephan-im", ou terra de damões-do-cabo, que na verdade eram os coelhos, seria depois latinizada para dar Hispânia, e mais tarde Espanha."
Quando voltavam para sua terra, no Médio Oriente, os fenícios levavam com eles o coelho e espalharam-no pela bacia do Mediterrâneo, por exemplo pelas ilhas Baleares e pelo Norte de África.
Mais tarde vieram os romanos, que se instalaram durante séculos na Península Ibérica, e também levaram o coelho para outras paragens na Europa. "A primeira tentativa de controlar a reprodução do coelho terá ocorrido na Península Ibérica, um século antes de Cristo", conta o biólogo Miguel Carneiro, também do Cibio, e autor principal do artigo com esta descoberta, publicado este mês na edição online da revista britânica Molecular Biology and Evolution.
A partir da ocupação romana passa a haver múltiplas referências aos coelhos. "Uma das mais célebres é a de Plínio, o Velho, na sua História Natural, no primeiro século da nossa era, onde já se refere o hábito de consumir fetos dos coelhos, bem como o facto de produzirem imensos prejuízos na agricultura. Também durante Adriano, um dos mais célebres imperadores romanos - imortalizado por Marguerite Yourcenar em Memórias de Adriano -, circulavam na península moedas com coelhos cunhados na sua face", acrescenta Ferrand de Almeida. "A partir dessa altura há referências permanentes a estruturas belíssimas chamadas "leporaria", que eram cercados feitos de pedras onde os coelhos eram mantidos para serem usados na caça e na alimentação. Há muitos vestígios arqueológicos dessas estruturas. Esta seria uma das hipóteses para a domesticação do coelho ter ocorrido na Península Ibérica."
Carne que não é carne
No entanto, outros registos históricos sugeriam que a domesticação tinha ocorrido mais tarde, por volta do ano 600, nos mosteiros da Provença. A fundamentar esta suposição encontra-se uma decisão do papa Gregório I, que tinha sido monge beneditino, em que considera que os fetos e as crias recém-nascidas de coelho não eram carne, pelo que podiam comer-se durante o jejum da Quaresma. E assim a criação de coelhos difundiu-se nos mosteiros da Provença. "Há muitíssimos documentos históricos que atestam a frequente troca de coelhos entre abadias, e mesmo com países como a Inglaterra. Este processo poderia ter levado à domesticação do coelho e seria uma hipótese de domesticação realizada fora da península, proveniente das populações selvagens do Sul de França", refere Ferrand de Almeida. Tenham sido os romanos ou os monges da Provença, os sinais claros da domesticação do coelho só surgiram muito mais tarde, a partir de meados do século XV. Em iluminuras e pinturas, começaram a aparecer os primeiros coelhos com cores diferentes, desde brancos a avermelhados, em vez da cor parda dos selvagens.
Um dos quadros mais célebres que representa um coelho branco é de Ticiano, Madona e Menino com Santa Catarina, também conhecido como A Virgem do Coelho, de cerca de 1530, que está no Museu do Louvre. "Esses mutantes de cor poderão corresponder a um processo de domesticação já terminado. E a partir daí o coelho doméstico difundiu-se por todo o mundo e teve um sucesso enorme", explica Ferrand de Almeida.
No século XVI, há registos de coelhos de vários tamanhos e cores em França, Itália, Flandres ou Inglaterra, o que sugere que a sua domesticação estava já concluída nessa altura.
Exclusivo da Europa
Mas qual das duas hipóteses para a domesticação do coelho, compatíveis com os registos históricos, está afinal certa?
A equipa Ferrand de Almeida começou à procura de uma resposta na genética, há cerca de uma década, com cientistas de outros países, nomeadamente de França. Já nessa altura os resultados apontavam para os monges da Provença. "Havia indicações genéticas que sustentavam essa hipótese, mas eram muito fragmentadas", diz Ferrand de Almeida.
Agora foi feita uma análise genética mais aprofundada, no trabalho de doutoramento de Miguel Carneiro, orientado por Ferrand de Almeida. Em colaboração com cientistas franceses e norte-americanos, estudaram-se mais regiões no genoma do coelho, comparando-se animais domésticos com populações das duas subespécies selvagens na Península Ibérica e no Sul de França.
O ADN dos coelhos corroborou a história relativa aos monges. "A origem da domesticação do coelho não está na Península Ibérica, mas no Sul de França. Os monges iniciaram a domesticação do coelho que hoje temos em todo o lado, há cerca de 1400 anos. Os nossos dados suportam estes registos históricos", sublinha Miguel Carneiro. "O coelho é o único mamífero domesticado exclusivamente na Europa. Pensa-se que o porco foi domesticado por toda a Eurásia."
A Oryctolagus cuniculus cuniculus, que era a única subespécie presente no Sul de França naquela época, é assim o antepassado directo dos coelhos domésticos. O cenário de um único sítio para a origem da domesticação do coelho contrasta com o que ocorreu com a maioria dos animais - ou foram domesticados em várias regiões, como o cão, ou a partir de várias espécies ou subespécies, como o burro, em África. Em comparação com muitos outros mamíferos, domesticados há mais de cinco mil anos, o caso do coelho também é muito recente. No cão, pelo contrário, tal pode mesmo ter começado há 14 mil anos. Outro aspecto invulgar é o facto de o antepassado do coelho doméstico ainda existir, ao contrário do que acontece noutros casos, como a vaca (os últimos auroques extinguiram-se no século XVII, na Europa Central).
Menos de 1200 animais
E de quantos coelhos selvagens descendem todos os domésticos que existem hoje no mundo? A equipa também pôde determinar esse número, agora que já se sabe quer onde e quando os coelhos foram domesticados (a partir do ano 600), quer quando o processo estava terminado (século XVI). Tendo em conta a diversidade genética dos coelhos domésticos actuais, todos descendem de 1200 animais, no máximo, se a domesticação foi lenta. Ou de apenas 14 coelhos, no mínimo, se foi muito rápida. "Provavelmente foram mais de 14. Terá sido um processo mais lento", diz Ferrand de Almeida. Coelhos bravos e domésticos pertencem à mesma espécie, os últimos apenas se consideram uma população diferente, seleccionada para ter características especiais. Entre essas características inclui-se um comportamento mais dócil e a reprodução ao longo do ano todo, enquanto o selvagem só se reproduz durante quatro a cinco meses. Além das variações de cor, o tamanho do coelho doméstico pode ir dos 800 gramas a dez quilos (o bravo tem pouco mais de um quilo). O tamanho das orelhas também muda bastante.
Hoje há pelo mundo fora mais de 200 variedades de coelhos domésticos, a maioria das quais surgiu nos últimos 200 anos. "Na época vitoriana havia uma paixão pelos animais. Deu-se uma explosão da criação de animais, desde cães, gatos, até canários", realça Miguel Carneiro.
Além de grande relevância económica, o coelho doméstico é muito usado como modelo de estudos em toxicologia, embriologia, osteoporose ou evolução.
Pela sua parte, Ferrand de Almeida vai lançar este ano um projecto de investigação do genoma do coelho com o Instituto Broad (ligado ao MIT e à Universidade de Harvard), nos Estados Unidos, e com a Universidade de Upsala, na Suécia. O genoma do coelho já foi sequenciado pelo Instituto Broad, há menos de dois anos, e agora a ideia é sequenciar genomas de diferentes raças de origens distintas. "Queremos perceber o efeito da domesticação nas diferentes raças", explica o coordenador do Cibio.
Outra coisa que vai estudar-se neste projecto é o caminho evolutivo que as duas subespécies de coelhos estão a tomar. A perda de fertilidade quando ambas se cruzam reprodutivamente é um sinal de que estão a separar-se, pelo que os cientistas podem estudar a formação das espécies em tempo real. "Estão a caminho de se tornarem duas espécies diferentes. É um modelo fabuloso para o estudo da origem das espécies", diz Ferrand de Almeida.
Para os próximos tempos, esperam-se então mais capítulos da história do coelho, que "é tão rica", remata Ferrand de Almeida.